Escavando Memórias nos Vestígios Arqueológicos do Quilombo Saracura
Autoria: Danielle Franco da Rocha, Edimilsom Peres Castilho, Eribelto Peres Castilho.
A cidade de São Paulo certamente constitui um imenso “acervo” histórico, social, cultural, arquitetônico e artístico brasileiro. Seu extenso e multiverso território, ponteado de memórias e importantes significados socioculturais, está marcado pelo passado, não obstante todas as tentativas de apagá-lo. [1]
No caso do Bixiga, bairro central da cidade de São Paulo, até fins do século XIX era considerado um território semi-rural onde viviam e perambulavam os “povos da floresta”, indígenas, caipiras e quilombolas. Juntamente com as áreas da Liberdade, Santa Ifigênia, Barra Funda e Glicério, o Bixiga era também conhecido como um importante território negro da cidade, preservando até hoje uma parte importante da História da Cultura Negra – o Quilombo Saracura.[2]
O “surgimento” do Bixiga remonta aos caminhos indígenas pré-cabralinos, era um importante “peabiru” que levava dos Campos do Guaré, atual região da Luz e Bom Retiro, ao aldeamento indígena de Jeribatiba nas margens do Rio Pinheiros, passando pelo Bixiga, ao longo do Vale da Saracura, assim denominado pelos indígenas devido à grande presença dessa ave típica das margens alagadiças dos rios. Essa influência da cultura indígena no Bixiga permanece presente nos topônimos e ruas do bairro, como o Rio Itororó, Morro do Caaguaçú, Rua Japurá, Viaduto Jaceguai, Rua Una, Rua Itapeva, Rua Araquã etc.
O Quilombo Urbano Saracura
Com o crescimento da população negra no decorre do século XIX, a configuração geográfica do Vale do Saracura foi determinante para abrigar um dos primeiros quilombos urbanos de São Paulo, onde grande parte dos moradores eram compostos por lavadeiras, quituteiras, vendedores de ervas e comércio miúdo, que utilizavam as águas do rio para sobrevivência e trabalho.
Como o auxílio de inúmeras irmandades religiosas negras e movimentos abolicionista populares como os “Caifazes”, o Quilombo Saracura também foi o local de proteção de escravizados fugidos do “mercado de escravos” realizado no atual Largo da Memória, próximo ao Vale do Anhangabaú. Inclusive nesse período foi solicitado à Câmara Municipal o fechamento do acesso ao Vale da Saracura utilizado como rota de fugas de escravizados.
O estigma e preconceito associado a ocupação desse território negro no Bixiga originário do Quilombo Saracura foi descrita pelo jornal conservador Correio Paulistano em 1907, com a matéria intitulada “A Saracura”.
Todavia, no contexto de expansão da economia cafeeira paulista, de emergência da produção industrial e do consequente crescimento populacional da cidade de São Paulo em fins do Império, a região do Vale da Saracura começou a se modificar profundamente, dando origem a novos bairros.
A partir da década de 1920, a canalização do Rio Saracura para a construção da Avenida nove de julho expulsou toda a população negra que dependia da água para sobrevivência, trabalho e lazer, como ficou registrado na musica Tradição de Geral Filme, “O samba não levanta mais poeira, Asfalto hoje cobriu o nosso chão, Lembrança eu tenho da Saracura, Saudade tenho do nosso cordão”.
Apesar das tentativas de apagamento da História e da Cultura Negra no Vale do Saracura desde então, são inúmeras as práticas e manifestações culturais de matriz africana que permanecem resistindo nas ruas do Bixiga, preservando a identidade desse Território Negro no centro de São Paulo.
A Escola de Samba Vai-Vai, uma das mais antigas escolas de samba de São Paulo, também é um exemplo de resistência da Cultura Negra no Bixiga. Sua origem remonta a um grupo de sambistas que animavam os jogos de futebol nos campos de várzea do Vale da Saracura até que em 1 de janeiro de 1930 fundaram o Cordão Carnavalesco e Esportivo Vae-Vae.
Na década de 1970, depois da Escola de Samba Vai-Vai ocupar várias sedes no Bixiga, conquistaram sede própria em terreno localizado no encontro das Ruas São Vicente, Lourenço Granato e Cardeal Leme, que conformam uma encruzilhada em formato de “tridente” que é símbolo da escola. [3]
Com a chegada das obras do metrô da Linha 6-Laranja no Bixiga, no dia 21 de setembro de 2021 a Escola de Samba Vai-Vai anunciou que após 50 anos de sede própria iria deixar o local para a construção da Estação de Metrô 14 Bis, contudo garantindo sua permanência em outro terreno no Bixiga. [4]
Com o inicio das obras de escavação do Metrô, foram encontrados importantes “vestígio arqueológicos”, evidências materiais da secular ocupação desse território negro – o “Quilombo do Saracura”, levando a comunidade do Bixiga e inúmeros movimentos culturais a reivindicarem a preservação da Memória da Cultura Negra no bairro.
Imagens do Projeto de Resgate Arqueológico Sítio Saracura/14Bis (A Lasca Arqueologia)
Em Ato Público realizado no dia 2 de julho de 2022, organizado pelo movimento Mobiliza Saracura/Vai-Vai – grupo formado por moradores do Bixiga, ativistas do movimento negro, professores, pesquisadores, religiosos, artistas, jornalistas, etc., teve início as reivindicações para a criação de um Memorial no local para abrigar os achados arqueológicos e par alteração do nome da Estação 14 Bis para Estação Saracura/Vai-Vai, acompanhado de ações de Educação Patrimonial Participativa.
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[1] ROCHA, Danielle Franco; CASTILHO, Edimilsom Peres; CASTILHO, Eribelto Peres. O visível que oculta e o invisível que revela: tensões e disputas na construção da história de um território. Memoricidade – Revista do Museu da Cidade de São Paulo, nº 1, dez. 2020. Disponível aqui.
[2] ROLNIK, Raquel. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras – Etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro. In: Revista de Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, Cadernos Cândido Mendes, nº 17, set. 1989. Disponível aqui.
[3] ALEXANDRE, Claudia Regina. Exu e Ogum no terreiro de samba: um estudo sobre a religiosidade da escola de samba Vai-Vai. 2017. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível aqui.
[4] Vai-Vai deixará sua sede no Bexiga, em SP, após 50 anos. Folha de São Paulo, 21, set. 2021. Disponível aqui.